Quem conversar comigo por mais de 5 minutos perceberá em mim uma estranha fascinação pela dor de cotovelo. Não em senti-la, evidentemente. Raramente internalizo a tristeza alheia, mas consumo-a constantemente na forma de arte. Ao meu ver, a tristeza transmutada em arte – seja musicalizada, escrita ou encenada – é simplesmente a mais honrada atitude do ser humano, que do âmago de sua infelicidade consegue tirar algo de positivo não só para si mas para todo o mundo.
A música Milonga, da Fresno, desde 2008 figura na inabalável liderança das minhas músicas preferidas. Hoje eu resolvi explicar por quê.
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Ao meu ver, a música é uma história contada em 3 atos. O primeiro poderia ser chamado “A recaída”, pois é exatamente disso que se trata. Com um convite bastante singelo ao ouvinte, começa-se a letra mais forte que eu conheço. “Vamos falar de solidão…” e então ele narra o que acontece ao adentrar a casa de uma ex pela qual o eu-lírico está tendo uma recaída.
“Versos jogados pelo chão
Lembranças do que não presenciei
Mas decorei com exatidão
Como o passado que eu mesmo criei”
Sempre somos nós que criamos o nosso passado, pois este nada mais é do que nossa interpretação dos ocorridos. Se mudarmos o ponto de vista, muda-se também o passado. Toda história que contamos nada mais é do que uma invenção criada por nós mesmos para negarmos a efemeridade de um instante que não volta mais; em fato, não existe descrição real do passado, uma vez que a interpretação de cada um diz respeito somente a si.
“E tudo que eu posso oferecer
São minhas palavras pra você
No plágio de uma bela melodia”
Aqui rola uma metalinguagem – a bela melodia à que se refere nada mais é do que a própria milonga, um ritmo musical tradicional da américa latina que invariavelmente tende a ser dramático e/ou triste. E ele, no plágio desta melodia, rechei-a com belas palavras, pois na impotência diante da mulher que o deixou, isto é tudo que lhe resta.
“E tudo que eu quero te dizer
Eu já cansei de escrever
Quero te ver enquanto não é dia”
Ao término deste verso termina também o primeiro ato, o que fica explícito na “virada”. Com o vocal em silêncio, nota-se claramente a mudança na cadência dos instrumentos, que agora soam num ritmo dançante, pois é exatamente nesse contexto que se passa o segundo ato – que podemos chamar de “O encontro”: o eu-lírico, após não encontrar a amada em sua casa, vai atrás dela numa festa, numa tentativa extrema de reconquistá-la.
Extrema e… falha!
“Mas diz por que tu vais embora
Mas diz por que tens tanto medo
Se não acorda cedo
Nem trabalha, estuda ou namora
Mas diz por que chegou a hora
Agora que eu venci meu medo
Te peguei pelos dedos
Pra dançar enquanto o sol demora
Para chegar trazendo aurora
E a luz que cega e me dá medo”
Aqui ele descreve a festa, contando os acontecimentos em sua ordem de ocorrência – a moça foge dele, o que ele interpreta como medo de reestabelecer a relação entre eles e começa a argumentar com ela.
“E como um torpedo
Eu deslizo, eu vôo num mar de lençóis
E cada dobra conta histórias
De muitas delas sinto medo
São muitos enredos
Enrolados e embriagados como nós
Tão a sós, como nós, tão a sós”
Esse é um dos meus versos preferidos da música, pois é de uma profundidade absurda. Os lençóis aos quais ele se refere nada mais são do que uma metáfora para as relações passageiras da vida. Como um torpedo – algo em eterno movimento, que a nada se fixa, ou, quando o faz, causa somente destruição – ele desliza entre os relacionamentos passageiros da vida. Ele pula de uma cama a outra, de um lençol a outro, vivendo histórias que por vezes o fazem sentir medo. Não que suas companheiras lhe ofereçam algum perigo; mas lembram-lhe que não passam de pessoas solitárias e embriagadas (não necessariamente de bebida, mas embriagadas de qualquer coisa que lhes anestesie a dor da realidade), buscando um afago que seja em sua fugaz companhia, sem notar que ele também carrega em si a solidão.
E então o terceiro ato, que podemos chamar de “O término”, inicia-se de forma ainda mais evidente. Surge nele o misto de sentimentos de uma pessoa que vê o amor de sua vida escapar-lhe pelos dedos, que vai desde a mais absurda raiva, passando pela tristeza, pela falta de esperança, pela descrença, e chegando à vontade de esquecer. Ele não sabe se xinga ou se pede perdão; não sabe se esquece ou se entrega-se às lembranças; não sabe se foi bom ou ruim; sabe apenas que não existirá vida feliz dali para frente – ou pelo menos é assim que ele pensa. Esta inexatidão de sentimentos é tamanha que existem três vozes dizendo praticamente coisas opostas – enquanto o Tavares berra-nos aos ouvidos declarações de raiva, o Vavo suspira a descrença numa vida feliz, e o Lucas completa o trio com sua necessidade de esquecer.
Não bastando a masterpiece que a música é por si só, ela ainda dialoga com todo o resto do disco, uma vez que simboliza o derradeiro fim de um CD que foi iniciado com as músicas “sobre todas as coisas que eu…” “não quero lembrar”.
Hoje, quando Milonga é tocada ao vivo, o último verso, “vou te esquecer”, é substituído por “já te esqueci”, e o romance que uma vez trouxe tamanha tristeza, por fim tornou-se apenas a inspiração para uma canção. Desta forma, se o amor não foi eterno (e nunca o é, “posto que é chama”), ao menos a obra de arte que dele surgiu será. Se não para todos, ao menos pra mim.
Lucas é o maior compositor brasileiro da minha geração. Ele, ao lado do Tavares, eram simplesmente monstruosos. O sol se põe todos os dias um pouquinho mais triste simplesmente por lembrar que hoje eles estão separados. Mais aí vem a madrugada a lembrar-nos de que separados ainda são gênios, e agora produzindo em dobro.
E é por isso que essa é minha música favorita há 7 anos.
Fo-da! Milonga é definitivamente uma das melhores músicas. O maior erro da vida é não escutar ela com os dois lados do fones num volume que te transporte pra outra realidade.
Finalmente alguem que entende milonga da mesma forma que eu!! Arrepiei só de ler! Incrivel!
E foi assim que você me convenceu a tomar vergonha na cara e escutar Fresno de vez. Muita gente que conheço pergunta se gosto e fico com aquela expressão vazia do “nunca ouvi”. “Milonga” é realmente bela, acabo de escutar. E tenho especial afeição pela sutileza voraz do término, a tristeza escancarada em música. É mesmo uma das demonstrações mais sinceras do ser humano. Ainda bem que a música existe. E melhor ainda termos nossas favoritas.
Abraços.
Cara, vc descreveu oq eu queria dizer por 7 anos, estou impressionado como alguém colocou em texto o que essa música é… chorei quando eles tocaram em minha cidade, fui no show do Esteban… ele tocou milonga e o público com a voz de “raiva” do Tavares ao fundo, tudo muito mágico. Depois de um tempo, show da Fresno e mesma coisa… Simplesmente perfeito… Única coisa que me deixa feliz com a separação dos dois foi que Tavares se juntou ao mestre Humberto e os dois juntos… nossa… sonho em um dia ver os três (Lucas, Tavares e Humberto) tocando algo juntos.
Essa foi a análise mais sensível, perceptiva e rica que eu já li sobre uma música. Muito obrigada por compartilhar seu talento 👏👏👏
Excelente análise. Concordo que o Lucas é um ótimo compositor, essa banda me acompanha, apesar das músicas antigas me tocarem de forma diferente, agora a vida adulta me embebeda de vazios de significados e me tira um pouco do turbilhão de emoções que senti com todas essas músicas.