Era segunda-feira, 31 de outubro. Meu aniversário. As ruas da Lapa estavam tomadas. Uma grande disputa política ia terminar em questão de horas: de um lado, Marcelo Freixo, representando uma esquerda meio extrema, idealista e intransingente, mas com ótimas intenções e expertise; do outro, Marcelo Crivella, o homem cujo nome se jogado no Youtube o primeiro resultado será um pedido de doação a fieis evangélicos, representando tudo que há de pior nesse país: a direita ultraconservadora, a igreja evangélica, a corrupção e a família Garotinho.
Cheguei nas ruas da Lapa junto com minha ex-namorada e um amigo antes do anoitecer. Bebemos algumas cervejas, ouvimos aqui e ali que havíamos perdido, combinamos entre si de não se deixar abater pois, afinal, era meu aniversário. Acabou que perdemos mesmo, e de lavada, pois o Rio de Janeiro nunca soube votar, e decidimos portanto beber duas catuabas nós três.
Não sei exatamente como, quando, ou por que, mas em algum momento encontramos um grupo de amigos deste meu amigo, entre eles uma menina muito divertida e um cara nojentinho com toda a pinta de gay. Eu e o bonde estávamos absolutamente fora desta realidade após as catuabas e mais algumas cervejas e uns becks e coisas semelhantes, quando subimos algumas escadas da Lapa e entramos em um bar iluminado, com mesas de sinuca e uma salinha escura com karaokê.
Fomos ao karaokê, cantamos duas ou três músicas, e então o grupo começou a se dispersar pelo salão. Eu estava completamente bêbado. Nunca me dei muito bem com nenhum álcool além de cerveja, mas aquela noite estava brilhante; tirando todas as circunstâncias políticas, como sempre neste país. Em algum momento, minha então namorada puxou-me para o banheiro, e eu fui, sem nem entender o que estava acontecendo direito. Quando dei por mim, havíamos transado e estávamos de volta no salão.
O sexo mudou algo em mim. A onda, que me havia levado lá pra cima, fez-me cair lá embaixo. A namorada foi fazer alguma coisa. Eu entrei na salinha escura do karaokê sozinho e comecei a olhar pro chão. Tudo se mexia. Uma euforia me tomava o peito, uma satisfação ardente de ebriedade me esquentava, entreguei-me à parede como a uma cama, e eis que então, sem mais nem menos prosa: chorei.
Comecei a chorar. Muito, muito, muito. Feito uma criança. Ninguém entende nada. As pessoas vão me ver e eu começo a falar coisas desconexas. “Eu não estou triste, eu juro, não sei por que estou chorando”, dizia enquanto os olhos jorravam. Lembro de coisas do passado. “A minha vida inteira fizeram bullying comigo”. Cito exemplos. “Eu tô velho agora”. Fazia 22 anos. “Mas eu tô muito feliz com a minha vida, eu juro”, reafirmava, tentando acalmar todo mundo.
A menina, a amiga do meu amigo, que me acalmou. Olha que maluquice. Estava indo trabalhar num cruzeiro por meses. Ia desembarcar em várias cidades loucas e curtir a vida de viajante. Ela contando as expectativas pra viagem me distraiu e acalmou o choro. Fomos todos comer um hambúrguer. Ganhei desconto por ser o aniversariante. Alguns fogos queimaram no céu, ninguém entendeu por quê. Disseram que era pra mim. Não era, mais acabou sendo.
Mais tarde, já em casa, minha ex-namorada conta que o menino, aquele nojentinho com pinta de gay – você está se perguntando por que eu citei essa informação? -, ele mesmo, tentou beijá-la enquanto eu me desfazia em lágrimas. Veja vocês. Que audácia. Ameacei-lhe de todas as formas possíveis pelo whatsapp. Não cheguei a ver a resposta – dormi.
No dia seguinte, acordei com a pior ressaca da minha vida. A cabeça explodia. Nenhum remédio ficava no estômago. Uma grande explosão de dor e sofrimento, jorrando desgraça por todos os meus orifícios. Fui parar no hospital.
Foi a última vez que eu passei mal. Até, bem…
Era terça-feira, 31 de outubro. Meu aniversário. Meus pais me parabenizaram logo quando acordei. Por todo lugar que passava, alguém me dava parabéns. No trabalho, uma explosão de carinho e amor. Já no corredor, Carolzinha, a menina mais gracinha de todas, veio correndo me dar um abraço. E muitos outros queridos vieram à minha sala depois. Uma tempestade infinita de amor e carinho.
Almoçamos no meu lugar favorito. O atendimento foi uma desgraça. Sempre é muito bom, mas aquele dia foi uma desgraça. Fizemos piada, tomamos duas cervejas e comi até não aguentar mais. À tarde, quando todos no escritório se juntaram para fazer a reunião diária de tarefas, a sala foi invadida por dezenas de cabeças gritando parabéns. Um bolo maravilhoso foi posto em minhas mãos, as quais eu usava para esconder minha cara vermelha feito um tomate. Não parava de entrar gente pela porta. As outras salas ouviam o barulho e vinham se juntar à galera. Que sentimento gostoso de amor. Que sentimento esquisito de vergonha!
“Discurso!”, gritaram. Fingi que não ouvi. Até conseguiria dizer uma palavra ou outra, mas como não fizeram tanta questão, não insisti também. Só queria abraçar um a um ali, dizer obrigado e entupi-los de bolo e amor. Chegando em casa, meus pais me receberam com mais um bolo e salgadinhos. Fui dormir após duas vitórias no lol e um beck merecido de skunk.
No dia seguinte, acordei com um bug generalizado por todo o corpo. A cabeça explodia. Nenhum remédio ficava no estômago. Uma grande explosão de dor e sofrimento, jorrando desgraça por todos os meus orifícios. Não fui parar no hospital, por que nem sair da cama conseguia.
Só fui acordar lá pras 17h. Mamãe me serviu um almocinho, coloquei no jogo do Real Madrid e dormi de novo até 20h. Tive que cancelar uma comemoração de aniversário. Embolou minha semana inteira.
Resolvi contar isso tudo pelo esquisito simbolismo de ter passado mal dois anos seguidos pontualmente no dia após o meu aniversário. Pode ter uma infinidade de simbolismos nisso. Ou pode ser só coincidência mesmo.
Eu sou um cara muito tranquilo. A vida passa e eu não me deixo afetar muito por ela. Envelhecer, contudo, mexe comigo. Entristece mais que qualquer coisa. As coisas passam, as pessoas também, eu consigo lidar com isso. Mas eu mesmo passar, isso é chato. O rosto que eu tive e não posso ter de novo? A juventude se esvaindo a cada dia pelos dedos? Eu sempre achei que os 15 seriam o melhor ano da minha vida. Foi mesmo. Depois foi os 18, os 21. Foi tudo bom pra caralho. E não volta nunca mais.
Isso mexe comigo mais do que qualquer coisa. Terá sido isso, a razão da explosão?
Ou uma recusa primitiva do corpo à tudo o que eu tenho ingerido? Uma recusa simbólica ao álcool, à vida, às submissões cotidianas? Terá sido meu inconsciente tentando expressar por meio da dor sua insatisfação por envelhecer assim?
Será que eu envelheci como eu queria envelhecer?
A vida é boa, mas é o bastante?
De que importa isso, afinal? Que importância eu tenho?
Não seria pior envelhecer em uma cadeia, como tantos?
Ou não seria a mesma coisa, no final das contas?
Todo esse tempo perdido. Pra mim, o ano acaba no aniversário.
Foda-se 2018. Meus 23 anos já começaram.